Paulo Juarez Rueda Strogenski
Mestre em Lingüística pela UFPR
RESUMO
A educação (e conseqüentemente o ensino de língua materna) tende a passar (e precisa) por transformações porque a sociedade está mudando num ritmo muito mais rápido daquele de algumas décadas atrás. Nesta situação, o ensino de língua é encarado por muitos como sendo apenas uma técnica a mais, já que, a partir de uma visão tecnicista muito em voga atualmente, este não se apresenta como um futuro gerador de recursos tão eficiente como aparentam, muito mais ostensivamente, as disciplinas ligadas à tecnologia ou ao mercado. Porém, a língua deve ser percebida como o meio com o qual a humanidade organiza a sociedade e, claro, a tecnologia e o mercado.
Qualquer debate sobre o “ensino de língua materna” imediatamente remete a temas como aqueles referentes ao ensino de redação ou de gramática. No entanto, antes de se falar sobre o ensino, de um ou de outro aspecto da língua, é indispensável pensar-se a postura do professor frente ao problema que é ensinar. “Problema” até por uma questão de conceito, já que muitos discutem se de fato alguém “ensina” algo a outro alguém ou se é esse outro “alguém” que aprende alguma por si só, contando apenas com a interferência daquele primeiro “alguém”. Isso pode parecer apenas uma questão de retórica, mas em termos politicamente corretos a especificação do sujeito da ação é, no mínimo, uma atitude necessária.
Vamos, por uma questão de economia de tempo, sem querer, em nenhum momento, diminuir o papel de cada um no processo ensino/aprendizagem, assumir que de fato o professor ensina algo a alguém. Se for assim, então também teremos que assumir que o aluno aprende algo que é ensinado, aqui, pelo professor. No nosso caso, a língua.
Voltando um pouco ao título deste trabalho, seria apropriado também esclarecer que língua materna, stricto sensu, é a língua falada pela comunidade onde a pessoa nasce, ou seja, é a língua que a criança começa a aprender desde o nascimento e que praticamente vem a dominar ainda em idade pré-escolar; a língua materna de fato não é ensinada - pelo menos não formalmente. A criança a aprende por si só, ouvindo as outras pessoas falando e arriscando por conta própria. O adulto, no máximo, a corrige quanto a algum uso que não seja comum no seu meio de fala. Note-se que essa “correção” em nada se assemelha à correção que é feita por um professor de português que toma a gramática normativa como parâmetro de língua “correta”. A correção feita pelo adulto toma o seu próprio conhecimento sobre a língua (que normalmente é o conhecimento partilhado pela sua comunidade) como parâmetro de bem falar, dependendo de muitos fatores extralingüísticos, como sexo, classe social, localização geográfica, etc.
Se aceitarmos como verdadeiro (o que me parece indiscutível) que a criança aprende esta língua em 3 ou 4 anos, a ponto de poder se comunicar, contar histórias, cantar musiquinhas, brincar e jogar com seus colegas, negociando regras (em alguns jogos, muito complexas) e possíveis prêmios para os vencedores ou castigos para os perdedores, então, por outro lado, não poderemos aceitar como verdadeiro que seja esta mesma língua a que a criança é exposta durante oito ou mais anos e que não consegue dominar mesmo depois de tantos anos nos bancos escolares. Se for, então a escola a faz desaprender o que já sabia. Segundo PERINI (1997, p.11):
“Saber gramática, ou mesmo saber português, é geralmente considerado privilégio de poucos. Raras pessoas se atrevem a dizer que conhecem a língua. Tendemos a achar, em vez, que falamos “de qualquer jeito”, sem regras definidas. Dois fatores principais contribuem para essa convicção: primeiro, o fato de que falamos com uma facilidade muito grande, de certo modo sem pensar (pelo menos, sem pensar na forma do que vamos dizer), e estamos acostumados a associar conhecimento a uma reflexão consciente, laboriosa e por vezes dolorosa. Segundo, o ensino escolar nos inculcou, durante longos anos, a idéia de que não conhecemos a nossa língua; repetidos fracassos em redações, exercícios e provas não fizeram nada para diminuir esse complexo.”
De qualquer maneira, teremos que aceitar que algo não está funcionando como realmente deveria, alguma coisa não está encaixando na equação: ou a criança desaprende a língua materna que já havia aprendido ou a escola ensina uma outra coisa que não é a língua materna.
Parece-me que, realmente, acontecem as duas coisas: como a escola preocupa-se em ensinar algo que não faz parte da realidade lingüística da criança, esta acaba por se confundir entre o que a escola considera língua e aquilo que ela conhecia como língua já antes de ingressar na escola. Na maior parte dos casos, ela tenta assumir a língua da escola como sendo a LÍNGUA, a verdadeira, a culta, a bela, etc. (por incentivo do professor, naturalmente) e, ao mesmo tempo, às vezes inconscientemente, estigmatiza sua própria variante, reservando a sua língua para momentos descontraídos do dia-a-dia, para os amigos, para a família, ou seja, para a vida. Vida esta que parece não combinar com a língua ensinada na escola.
Mas em nenhum momento sejamos ingênuos a ponto de pensar que a escola deveria ensinar outra modalidade senão a desta língua considerada “culta” e “bela” citada anteriormente. Não se pode imaginar que cada escola privilegie a modalidade lingüística do ambiente em que está inserida porque isso significaria um enorme risco de se aumentar ainda mais o abismo social que existe entre as diferentes camadas sociais do país. Afinal, a principal função da escola é a de educar e, em um país dito democrático, educar a todos da mesma maneira – no caso da língua, a mesma modalidade, oportunizando as mesmas chances de sucesso social. Também não devemos se ingênuos e acreditar que isso aconteça em nosso país:
“A questão que se coloca, em face disso, é trágica, mas não é difícil de ser posta. A escola brasileira, ainda que pseudodemocratizada, no que diz respeito à língua materna, persegue, no geral, a tradição normativo-prescritiva... A conseqüência disso para quem tenha algum verniz de formação lingüística é óbvia: muitas e variadas falas, muitas e variadas normas chegam à escola e essa persegue ainda um ideal normativo tradicional. A grande maioria cala e tem que deixar a escola para lutar pela sobrevivência quotidiana e continuará subalterno, na sociedade que se reproduz de geração a geração, deixando o poder e a voz com aqueles que, por herança, já os adquiriram.” (SILVA, 1997, p.33)
Se aceitarmos que a escola deva ser democrática e igualitária, então não caberia qualquer outro objeto de ensino de língua senão a norma culta ou norma de prestígio. O ideal do ensino de língua materna é que através deste todos os alunos que ingressam em uma escola, pública ou privada, em qualquer lugar do Brasil, obtivessem o mesmo grau de domínio da norma culta para que todos saíssem da escola em condições de igualdade e tendo que depender apenas de seu esforço para realizar as suas aspirações.
Infelizmente, nós sabemos que isso não acontece e está muito distante de acontecer porque o ensino no Brasil ainda funciona como um instrumento de dominação, de forma que ainda é possível falarmos em escola de ricos, escola de periferia, escola do interior, etc. e saber que não estamos apenas nos referindo à sua localização espacial, mas, principalmente, às diferenças estruturais que as moldam. Claro que existem exceções, lamentavelmente poucas, que devem ser lembradas e que normalmente são frutos de alguma iniciativa individual ou de um acaso e não como o resultado de um projeto social maior.
O problema não está, a meu ver, na delimitação do objeto de ensino, mas na forma como este objeto é abordado. O ensino de língua materna deveria ser uma forma de complementação do conhecimento de língua que a criança traz de casa e não uma forma de oposição entre duas modalidades lingüísticas que, em última análise são apenas isso: dois modos de se usar a mesma língua de acordo com aquilo que o sistema da língua permite, isto é, não são duas línguas diferentes (uma boa e outra ruim) como muitos puristas defendem. Logo, a questão não está exatamente no que se deve ensinar na escola. Deve-se ensinar a modalidade culta da língua. Como? Ora, lendo, escrevendo, analisando, interpretando, compreendendo e até aprendendo regras gramaticais, não todas, como a escola tradicional fazia, mas aquelas que auxiliem a ler, escrever, analisar, interpretar, compreender textos. As regras gramaticais não podem ser um fim em si mesmas, elas devem ser vistas como um instrumento de reflexão sobre a linguagem, sobre a norma culta e outras normas.
“Uma das medidas para que esse grau de utilização efetiva da língua escrita possa ser atingido é escrever e ler constantemente, inclusive nas próprias aulas de português. Ler e escrever não são tarefas extras que possam ser sugeridas aos alunos como lição de casa e atitude de vida, mas atividades essenciais ao ensino da língua. (POSSENTI, 1996, p.20)
Da mesma forma, o ensino de redação não deve privilegiar apenas os aspectos técnicos da produção textual, mas o desenvolvimento cognitivo do aluno, porque produzir um texto implica, em primeiro lugar, pensar e organizar este pensamento de forma que possa ser compartilhado por outros. O problema é que o professor, muitas vezes, não está preparado para ultrapassar os limites técnicos do texto porque, em sua mente, ele já possui vários modelos do que seria um bom ou um mau texto, tecnicamente falando, e, além disso, outras vezes, não possui preparo suficiente para julgar coerentemente o conteúdo do texto do aluno, pois afinal, a caneta vermelha está sempre preparada para marcar o “erro”; caneta inquieta se o erro não se mostra, mas que deve estar lá, que precisa estar lá para tranqüilizar o professor que não consegue reduzir a nota simplesmente porque não se trata de um texto bem elaborado ou com conteúdo superficial, já que isso acarretaria na recorrente reclamação do aluno: “Por que minha nota está baixa se não tem nenhum erro?”. Neste caso, a reclamação do aluno procede da mesma insegurança apresentada pelo professor: sem marcação com caneta vermelha, como reduzir a nota? A caneta vermelha é o instrumento através do qual o julgamento fica efetivado; além dela, é só autoritarismo e, muitas vezes, explicações que nada explicam.
Mas o que confere ao professor esta aura mística de defensor da língua portuguesa? Como se a língua fosse uma virgem medieval, inocente e indefesa, sempre ameaçada por algum bárbaro (um falante com seu falar grotesco) pronto para violentá-la e que por isso precisa a todo momento da proteção de um Sir Lancelot ou de um Sir Pasquale que, ou com suas espadas ou com suas canetas vermelhas, emprestam sua honra e sua vida em prol do digno e inacabável serviço de protetores. Sem dúvida é a sociedade que, historicamente, atribui ao professor de português o dever de resguardar a língua portuguesa de possíveis ameaças dos terroristas da língua, ou seja, quase todos nós, a partir de uma visão que o cidadão comum possui do que seja esta língua que deve ser defendida às custas, normalmente, das vidas escolares de milhares de joõezinhos e mariazinhas que, por uma infelicidade do destino, nasceram do lado “errado” desta mesma sociedade.
O calouro de Letras, ao ingressar no curso superior, leva consigo a expectativa que também ele será cobrado, depois de formado, a realizar o mesmo serviço de defesa da língua pura e, durante o curso, essa expectativa se transforma em angústia por perceber que o domínio desta língua não é tão fácil e, dependendo dos conteúdos estudados, que o seu ensino afigura-se como secundário. Mas se o domínio da língua padrão for secundário para os seus futuros alunos, então ele será professor exatamente do quê? De redação? De texto? Ou de outra coisa? No mínimo, os modernos currículos de Letras projetam que ele será um professor de algo que ele próprio não estudou durante a sua vida escolar.
Mas tudo bem! Formado, este aluno sai da faculdade cheio de idéias na cabeça, com vários conceitos emprestados da Lingüística e da Sociolingüística e entra (quando consegue) no mercado de trabalho pronto para ser um professor diferente, pronto para ser um inovador e, no seu primeiro contato com o coordenador da escola, recebe a apostila ou o livro didático que deverá ser utilizado em suas aulas para que ele se “familiarize” com o material. E daí? O que fará esse professor recém-saído da faculdade que leva na sua bagagem alguns textos que defendem idéias interessantes, porém perturbadoras, que contradizem a apostila, o livro didático, a coordenadora e, principalmente, o senso comum? Entre o emprego e a dúvida sobre o conteúdo do que foi aprendido durante o curso, provavelmente ele escolherá o primeiro, o que implica que, ao menos durante parte de sua vida profissional (devemos esperar que ele amadurecerá), irá formar mais cidadãos com a mesma visão tradicionalista e preconceituosa a respeito da língua.
Também o seu ingresso no mundo profissional pode ser diferente: talvez não haja apostila e nem obrigatoriedade no uso do livro didático. Talvez até a coordenação compartilhe suas idéias inovadoras. Ótimo! Feliz, este nosso suposto professor irá encarar os seus alunos com bastante liberdade para trabalhar os conteúdos da forma que ele julgue mais acertada. Quem sabe até um trabalho profundo com leitura e produção de texto. Pode ser que de fato seja assim, mas também é muito possível que, após as primeiras aulas, ele seja chamado pela direção e questionado sobre quando ele começará a trabalhar com língua portuguesa ou, ainda, talvez seja avisado que têm havido reclamações de pais preocupados com a falta de conteúdo das aulas de português.
Talvez, ainda, o questionamento seja mais direto e venha de seus próprios alunos, preocupados com os conteúdos gramaticais que podem vir a ser cobrados no vestibular, nos exames de seleção para ingresso no ensino médio ou no exame nacional do ensino médio, ENEM, (sem esquecer, é claro, os famosos concursos públicos, muito mais gramatiqueiros) e que não estão sendo contemplados pela forma como o professor conduz a disciplina. E nós temos que admitir que a pressão exercida, principalmente, pelo vestibular é muito grande dentro de qualquer comunidade. Os alunos do 3º ano do ensino médio sentem-se muito angustiados com a proximidade deste concurso e tudo o que eles querem estudar está, de certa forma, ligado aos conteúdos que constam nos programas das provas. Isto quer dizer que eles querem ler os livros do vestibular, estudar gramática (se os conteúdos gramaticais constarem dos programas), e praticar produção de texto de acordo com os modelos de redação adotados pelas universidades que lhes interessam.
O professor, enquanto ser social, acaba por encontrar diversas dificuldades para ficar alheio ao processo social em que está inserido. Se seus alunos estão ansiosos com a proximidade de um exame que pode, de certa forma, determinar suas vidas, ele acaba também por se deixar envolver e passa a se sentir ansioso por auxiliá-los.
Além dos alunos, da escola e dos pais dos alunos, o professor ainda precisa conviver com o estigma de ser um vigilante a serviço do bem falar em todos os ambientes por onde passa. Cada vez que ele declara a sua profissão, acaba por gerar um certo desconforto em seus interlocutores que, parece, sentem-se “vigiados” na sua maneira de falar, ao contrário do que aconteceria, por exemplo, com um professor de matemática, porque, afinal, as pessoas não fazem cálculos o tempo todo, mas falam.
E como falam, e como sabem falar, parece que todos sentem que de fato a língua é um produto e uma propriedade social, ou seja, é de todos. Por isso, talvez, tantos se julguem no direito de opinar sobre ela e de tentar defendê-la. E o problema não é o fato de eles opinarem ou tentarem esta defesa impossível, mas a modalidade de língua que foi eleita para ser adorada, uma modalidade que, em essência, tem muito pouco em comum com a riqueza e a variedade de falares do português brasileiro.
Neste contexto cabe ao professor de português ensinar a língua viva, uma língua que possa servir como instrumento básico de comunicação e compreensão do mundo. Em última análise, como o meio com o qual a humanidade organiza a ciência, a tecnologia, a economia, o mercado de trabalho e, conseqüentemente, a sociedade. Assim, faz-se necessário um professor com capacidade de adaptação cada vez maior, para poder atuar como elo de ligação entre o aluno e uma sociedade complexa, multifacetada e, acima de tudo, exigente. Ligação essa que deve necessariamente passar pela linguagem e pela sua real importância em um mundo constituído, em essência, através de discursos.
Está justamente na necessidade desse novo perfil de professor o maior desafio, a meu ver, dos cursos de Letras, que já não podem mais se limitar à formação tecnicista (que privilegia o estudo das estruturas morfo-sintáticas) e cientificista específica da área (apesar de termos que reconhecer o importante papel desempenhado pela Lingüística na formação da atual geração de professores), mas ultrapassar seus próprios limites, relacionando cada vez mais a formação dos profissionais de Letras com áreas afins, como a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia e a Filosofia, entre outras, com o objetivo de formar um profissional humanisticamente mais preparado para enfrentar os desafios de um outro tipo de sala de aula.
Bibliografia
SILVA, Rosa Virgínia Mattos e. Contradições no Ensino de Português. São Paulo:
Contexto; Salvador: Ed. da UFBA, 1997.
PERINI, Mario A. Sofrendo a Gramática. São Paulo: Ed. Ática, 1997.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado das
Letras: ALB, 1996.
para saber mais:
www.dacex.ct.utfpr.edu.br
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